(allan kardec)
creio que a primeira vez que o espiritismo bateu à minha porta deve ter sido algures no liceu, quando assistia a sessões de cinema da meia-noite, aquelas sessões lendárias em que cada filme transmitido era realmente noctívago. o terror, a ficção científica, a acção, o erótico. e não as sessões de hoje, onde filmes aparentemente mainstream e de qualidade são relegados para as duas ou três da manhã.
a segunda vez, lembro-me bem, foi alguns anos depois, já na faculdade. num documentário transmitido pela rtp 2, apresentavam-se os principais pontos da doutrina espírita, porque razão milhares e milhares de pessoas professavam essa doutrina, porque razão era verdadeira, no entender dos seus seguidores. despertou-me um pouco a curiosidade ao ponto de vasculhar na biblioteca um livro ou dois que contivessem explicações do espiritismo. o único que encontrei associava o espiritismo a práticas demoníacas e ao ressurgimento do diabo na terra. nada de relevante, portanto.
porém, foi só em 2001, quando fiz um pequeno curso de conscienciologia e projecciologia pelo iipc (instituto internacional de projeciologia e conscienciologia - organização que estuda de modo experimental as experiêncis fora do corpo) que me apercebi mais claramente do que significava (ou teria significado) o espiritismo. apercebi-me da figura tutelar de allan kardec, cuja campa já tinha visitado, anos antes, em paris no cemitério de pêre lachaise, um dos mais belos cemitérios de toda a europa e que contém, entre outros vultos, o de balzac, chopin, jim morrison e o próprio allan kardec.
contudo, apesar da proposta espírita estar bem presente no instituto, a sua missão consistia em aprofundar as ligações existentes entre espiritualidade (se é que posso chamar espiritualidade ao que eles fazem!) e ciência. esse é, aliás, um dos pontos em que eles são mais criticados porque retiram o maravilhoso e o subjectivo a todo o fenómeno parapsicológico e acrescentam-lhe o lado científico, o lado da pesquisa laboratorial, o lado do experimento.
agora, há pouco tempo, decidi-me a ler (finalmente!) o livro dos espíritos, de kardec. foi muito interessante, embora ache que o livro está incrivelmente datado em certos pontos, necessitando de algumas revisões, que foram feitas, disseram-me por chico xavier, o espírita mais voluntarioso e fantástico do século XX. kardec ainda está absorvido pelas ideias veiculadas pela igreja católica, cristo continua a ser o cristo, a verdade continua a ser a boa nova, todos os valores católicos, que fizeram tanto bem à civilização porque a humanizaram, mas que também fizeram mal porque criaram na mentalidade do homem a ideia de que ele era pequeno, minúsculo e desgraçado, estão lá. mas, convenhamos, o livro foi escrito no final do século xix, nem os espíritos poderiam supôr que hoje estivéssemos numa época importante da história, em que a física quântica pretende explicar o mundo e a consciência, sem saber muito bem para onde vai, mas sabendo que o caminho é tortuoso e pode levar a uma relação mais proveitosa entre ciência e espiritualidade.
o livro dos espíritos é (foi) um início. hoje, sabemos mais. estudamos mais. desaprendemos mais, também. porque temos a tendência para inventar novos deuses (os livros de rodrigo romo e vitorino de sousa são um belo exemplo) e a pensar que o segredo é o melhor livro do mundo. hoje, o homem não pode ser pequeno nem pode querer ser pequeno. a humildade nunca poderá ser a melhor das virtudes, apesar de ser importante nas doses certas. a simplicidade, sim. o dom de ser simples, de não ser o dono da verdade, de amar e ser amado.o dom do abraço.
um dos pontos positivos d'o livro dos espíritos e do espiritismo é que é uma doutrina altamente consoladora, muito mais do que o catolicismo puro e duro. como os espíritas acreditam na reencarnação, todos os actos são vistos como actos para uma vida futura. aquilo que semeamos hoje colheremos amanhã. bastante diferente do catolicismo, em que a pessoa ou ia para o céu ou para o inferno. ou tinha de sofrer um bom bocado no purgatório. também diferente, igualmente, da reencarnação budista porque, segundo o budismo tradicional, se um tipo se portar mal, na próxima vida pode ser um cão. no espiritismo, só pode haver evolução ou permanecer tudo na mesma. o retrocesso não é possível porque contrário às leis da natureza.
e aqui ficamos. o livro está à venda nas fnacs. podem não acreditar, mas convém sempre conhecer a obra de kardec, aquilo que ele deixou, aquilo que ele pode semear.
jorge vicente