26.5.09

"Com Sara na Distância" (eugénio outeiro)



(pintura de jean-baptiste-camille corot, "marietta, dite l'odalisque romaine", 1843)


"este esvarar de areia sobre as costas
estes finos tremores no interior do braço
este formigueiro no peito feito de coração
este voar das borboletas na barriga
são as carícias que colho das ausências
é a minha forma de fazer o amor
mas na distância" (1)

eugénio outeiro



(1) OUTEIRO, Eugénio - Com Sara na distância. Sítio. Torres Vedras. ISSN 1646-1355. Nº 2 (Janeiro 2006), p. 5.

21.5.09

"Sara no Labirinto" (Eugénio Outeiro)



(pintura de lehmann, "young girls reading a letter by candlelight", s/d)


"Sara achou-se no centro das paredes tortas.
Disse joguemos
- houve um abalo de terra nesse instante
mas ela não reparou -
e atravessou a primeira das paredes.

Olhou em seu redor e não viu nada:
apenas luz ou sombras a esvarar pelos muros
e diminutos pássaros a percorrer abraços.
Não sabia que isso era a metáfora do resto,
que daí nasceria o decorrer de tudo.

Deu passos devagar, e sem querê-lo
invadiu territórios caminhando as nuvens.
Chegando no outro extremo perguntou que faço?
- o sol perdeu a luz por um momento
mas ela fechara os olhos e nem deu por isso -,
aguçou bem a orelha mas só ouviu chilreios.

A falta de respostas atravessou a parede.

Do outro lado era a sala de percorrer distâncias.
Disse este é o meu lugar,
onde me sento?

Procurou a poltrona mas não tinha encosto.
Descansou o seu corpo no chão entapetado.
Pregou o olhar no tecto e mais no texto
(o contexto era uma incógnita e nem existia)
Agarrou-se com força à situação,
cravou-lhe as unhas,
colou-se a ela como a sombra ao muro.
Mas tudo foi em vão.

A parede avançou e ela atravessou-a.
E fez-se então um turbilhão de fumo.
Um tornado sugou um infantário.
Uma aurícola estoirou.
Um trovão acordou para atingi-la (a ela!).
A sala em que estava era um latejo monocorde.

Mas Sara observou tudo com olhar tranquilo
e disse para si que aborrecido!

Juntou a indiferença à compostura
caminhou devagar
olhando para a frente.
Meteu primeiro as mãos,
logo a cabeça
e só depois o corpo dando um passo.

Atravessou a parede e viu-se fora.

No exterior viu de cima o labirinto.

E então sorriu,
lançou um beijo para o ar, traquila,
disse joguemos!
e voltou a entrar." (1)

eugénio outeiro



(1) OUTEIRO, Eugénio - Sara no labirinto. Sítio. Torres Vedras. ISSN 1646-1355. Nº 2 (Janeiro 2006), pp. 4-5.

20.5.09

PoPoetry



(pintura de henri fantin-latour, "la rêverie", s/d)


5.

cubo


(para o eugénio outeiro e o vincenzo natali)


pergunto-te a ti, sara, se da voz
te fazes labirinto e procura incessante
dos dedos. pergunto-te se sentes
dúvidas, se amas a água, o cubo
fechado, o não sei quê de irracional
que se encontra no interior do
ventre materno.

pergunto-te se calas os homens
quando te aproximas com um
alguidar branco, às vezes é difícil
amar quando as perguntas que
fazemos não formam eco: a empatia
do corpo e dos olhos.

pergunto-te, sara, se a fortaleza
existe, se somos estrelas ou bem-
aventurados no interior de um
labirinto sem chão: o ventre materno
permeia a água e dá um pouco
de si à chuva que cai abundantemente
da minha / tua janela.

pergunto-te se os rios que correm
fazem perguntas: um poema não
precisa de respostas nem de velhos
pontos de interrogação que evitam
a sua fragilidade intocada.

todo o labirinto / cubo / espaço mágico
é um misto de peles e de pontos
sagrados: não se permite conhecer,
apenas sobrevoar pelo dom da vida.

jorge vicente

19.5.09

PoPoetry



(pintura de edward burne-jones, "mermaids in the deep", 1882)


4.

iemanjá


(a dorival caymmi)


nunca peças a iemanjá
que o verso se sobreponha à vida:
na ciranda das ondas,
só se podem sobrepôr as águas
- o lento alimento da
mãe.



jorge vicente

16.5.09

PoPoetry



(pintura de ivor abrahams, "siren IV", s/d)


3.

song for missy


palavra-luz só quebra
quando da violação dos corpos
nascer o domingo claro
e a flor branca da areia

o único corpo que pode segurar
a vida é aquele que da imensidão
das rochas se moveu
- sémen de sons e partículas
elementares, rombo na pele,
deixa chorar quantu(m)
do mar se despede na entrega.

jorge vicente

PoPoetry



(fotografia de tony ward, "#19" retirada daqui)

2.

(sobre fotografias de richard murrian e tony ward)

tocarei ainda a pele
o tom cristalino do vinho
na margem sempre chã
do corpo

quando espero os dedos,
espero sempre a escrita
a respiração vinda de dentro
como se o amor e o prazer
fossem palavras e as sílabas
ritmos contrários de nascimento



(fotografia de tony ward, "#387", retirada daqui)

renasço perante o fogo
e o ritmo crescente da
erva fina - a relva onde
nos deitamos e onde o
gemido é uma gazela pronta
a nascer. palavras chãs
ritmos de aquém-poesia

tudo o mais são as larvas
e o tecido genital dos olhos.

jorge vicente

15.5.09

"europe endless" (r. hutter / f. schneider)



(fotografia de sebastião salgado, "serbia", 1995)


"Europe endless
Endless endless endless endless
Europe endless
Endless endless endless endless

Life is timeless
Europe endless
Life is timeless
Europe endless

Europe endless
Endless endless endless endless
Europe endless
Endless endless endless endless

Parks, hotels and palaces
Europe endless
Parks, hotels and palaces
Europe endless

Promenades and avenues
Europe endless
Real life and postcard views
Europe endless

Europe endless
Endless endless endless endless
Europe endless
Endless endless endless endless

Elegance and decadence
Europe endless
Elegance and decadence
Europe endless" (1)

kraftwerk




(1) retirado do cd dos kraftwerk, trans-europe express (1977) e daqui.

12.5.09

"heirloom" (bjork / martin console)



(pintura de annibale carracci, "the madonna and christ child", s/d)


"I have a recurrent dream
Everytime I loose my voice
I swallow little glowing lights
My mother and son baked for me

And during the night
They do a trapeze walk
Until they're in the sky
Right above my bed

While I'm asleep
My mother and son pour into me
Warm glowing oil
Into my wide open throat

I have a recurrent dream
Everytime I feel a hoarseness
I swallow warm glowing lights
My mother and son baked for me, oh

They make me feel so much better
They make me feel better

We have a recurrent dream
Everytime we loose our voices
We dream swallow little lights
Our mother and son bake for us

During the night
They do a little trapeze walk
Until they're in the sky
Right above our heads
While we're asleep
My mother and son pour into us
Pour into us
Warm glowing oil
Into our wide open throats

I have a recurrent dream

They make me feel better
They make me feel better" (1)

bjork


(1) retirado do cd, vespertine, de 2001 e daqui.

8.5.09

"race with the devil" (adrian gurvitz)



(fotografia de lee friedlander, "nude (madonna"), 1979)


"You'd better run
You'd better run
You'd better run from the Devil's gun

The race is on
The race is on
Now you'd better run from the Devil's gun

Strange things happen
If you stay
The Devil will catch you anyway
He'll seek you here
He'll seek you there
The Devil will seek you everywhere

And when he finds you
You'll soon find out
The Devil's fire just won't go out
He burns you up
From head to toe
The Devil's grip just won't let go" (1)

girlschool


(1) retirado do cd das girlschool, king biscuit flower presents in concert (1997) e daqui.

5.5.09

"cross-eyed blues" (c. williams)



(fotografia de richard avedon, "george bush, director, CIA, langley, virgina, march 2, 1976", 1976)


"Got one superstition, that's the one I really prize
I don't like nobody, who's got a pair of mean cross eyes

Said a cross-eyed man, hateful as a man could be
Slept with his eyes open, always lookin' cross at me

Gee but he was ugly, eyed me every way I turned
I could feel him lookin', Lawdy how his eyes did burn

Cross eyes make me shiver, cause they're so evil, low and mean
Hateful as the devil, weariest eyes I've ever seen

Folks who's got them cross eyes, things they see in vain
Folks who's got them cross eyes, things they see is always wrong
That's why me and cross eyes never gonna get along

If I'd see a cross-eyed person, I was about to meet
I'd just cross my finger, then I'd walk across the street" (1)

helen humes


(1) retirado do cd de helen humes, 1927-1945 (1996) e daqui.

4.5.09

carnaval (sónia regina e jorge vicente)



(pintura de alina lins, "orixás", 2007)


1.



que fazes, quando a tontura

chega aos meus versos?



eu, ouço

a bateria

(tão próxima ao coração)



vibro

- a harmonia me convida -



e sambo.



sonia regina





2.



eu sambo
e dança a ciranda
do pé.

a roda
o beija-mão
o poema
o grito

o saci da selva
e das árvores.

jorge vicente





3.


o pé então se revela



no samba na dança

na ciranda que chora



beija a mão, o poema

grita na selva, a roda



do fumo nos cachimbos

do saci e do caipora



sonia regina





4.



roda então o poema

na ciranda dos versos

em êxtase



a mão o dedo mindinho

o céu apontado na carne

do jovem menino



estou grávido de palavras

e de espaços: o som é a

palavra do batuque.



jorge vicente





5.



lateja o sangue

nasce o ritmo na carne



irrigado, o poema perdido

na matéria adianta-se



sobre os espaços



cúmplice, o batuque liberta

fragmentos aprisionados

no embrião da palavra



sonia regina





6.



não há palavra na solidão
do batuque. apenas o ritmo
milenar dos pés que alçam

as nuvens. os pés. o lento
amontoar dos dedos na pele
do tambor.

o rei momo vai despido.

jorge vicente





7.



atentos ao batuque desfilam

os pés descalços de fantasias



a água lava qualquer pó e nada

mais vem do céu, senão o vento

em sua voragem a atiçar as faúlhas



sobre a pele esticada as baquetas

malham em fogo ausente.



sonia regina





8.


o fogo prescinde sempre
prescinde do batuque e
da seiva contra seiva

a mangueira o bambu
a árvore da floresta
frondosa o tambor que
se ausenta. o silêncio.

tudo está ausente
e nada deixa de existir.
a floresta vive quando
a água subsiste e se
alimenta de saci-pererê

jorge vicente





9.


o saci prescinde do fogo:
quando não pita, assobia

brinca sem tambor
sem batuque
com animais pessoas
a floresta viva a água
os chás para anomalias

diverte-se com a existência,
o solitário do gorro vermelho.
a mata por companhia.



sonia regina





10.


não prescinde da morte
como do dia as nuvens que
trazem a sorte a folia do
dia a negritude do corpo

a falsa batida do batuque
claro

é o corpo a face rosada
da flor - o lento assobio -
as nuvens carregadas de
películas brancas.

as tuas.

jorge vicente





11.



não prescindem do dia

como da morte as películas:

brancos, nossos assobios

soam. lentamente.



cor de rosa, as faces

os corpos

a mais linda flor.



a sorte e a negritude do corpo

vivem o que não pertence

ao tempo. à folia. ao ritmo.



sonia regina





12.



ao ritmo pertencem os meus dedos
e as pequenas salvas de luz que
caem dos meus cabelos.

sabes: um poema nunca termina
nem os dedos são o apogeu da escritura.

tudo é palavra
tudo é ritmo

nada fica por entre os dedos
e ao alcance das mãos.


jorge vicente