Os demónios (Allan Kardec)
(fotografia de Anne Brigman, "The Lone Pine", 1908)
"A ideia de demónio não implica a ideia de espírito mau, senão na sua acepção moderna, porque o termo grego daimôn, donde ela resultou, significa génio ou inteligência e aplica-se indistintamente aos seres incorpóreos, sejam eles bons ou maus.
Por demónios, segundo a acepção vulgar da palavra, entendem-se seres essencialmente malfazejos. Como todas as coisas, seriam criações de Deus; sendo Ele soberanamente justo e bom, não pode ter criado seres destinados, pela sua natureza, ao mal e condenados por toda a eternidade. Se não fossem obra de Deus, existiriam, como Ele, desde toda a eternidade; ou então, existiriam muitas potências soberanas.
A primeira condição de toda a doutrina é ser lógica. Ora, à dos demónios, no sentido absoluto, falta esta base essencial. Concebe-se que povos atrasados, os quais, por desconhecerem os atributos de Deus, admitem nas suas crenças divindades maléficas, também admitam demónios. Mas, é ilógico e contraditório de quem faz da bondade um dos atributos essenciais de Deus possa supor que ele tenha criado seres destinados ao mal e a praticá-lo eternamente, porque isso equivale a negar-lhe a bondade. Os partidários dos demónios apoiam-se nas palavras de Cristo; não seremos nós a contestar a autoridade dos seus ensinamentos, que desejaríamos ver mais no coração do que na boca dos homens. Mas, estarão esses partidários certos do sentido que ele dava a essa palavra? Não é sabido que a forma alegórica constitui um dos caracteres distintivos da sua linguagem? Dever-se-à tomar à letra tudo o que o Evangelho contém? Não precisamos de outra prova, além da que nos fornece esta passagem:
«Logo após esses dias de aflição, o sol escurecerá e a lua não mais dará sua luz; as estrelas cairão do céu e as potências do céu serão abaladas. Em verdade vos digo que esta geração não passará, que todas estas coisas se tenham cumprido»
Não temos visto a ciência contradizer a forma do texto bíblico, no que se refere à criação e ao movimento da terra? Não se dará o mesmo com algumas figuras de que Cristo se serviu, na medida em que tinha de falar de acordo com os tempos em que viveu e com os lugares por onde passou? Não é possível que tenha dito conscientemente uma falsidade; se, no entanto, nas Suas palavras há coisas que parecem chocar a razão, é porque não as compreendemos bem ou porque as interpretamos mal.
Os homens fizeram com os demónios o que fizeram com os anjos; como acreditaram na existência de seres perfeitos desde toda a eternidade, tomaram os Espíritos inferiores por seres eternamente maus. Devem entender-se por demónios os seres impuros que, muitas vezes, não valem mais do que as entidades designadas por este nome, mas com a diferença do estado deles ser transitório. São Espíritos imperfeitos, que se rebelam contra as provações porque têm de passare que, por isso mesmo, levam mais tempo a sofrê-las. Contudo, conseguem sair desse estado quando o quiserem. Deste modo, poderíamos aceitar a palavra demónio com esta restrição. Mas, como a entendemos actualmente num sentido exclusivo, poderá induzir em erro, fazendo crer na existência de seres especiais criados para o mal.
Satanás é, evidentemente, a personificação do mal sob forma alegórica, visto não se poder admitir que exista um ser mau destinado a lutar, de poder a poder, com a Divindade, tendo por única preocupação contrariar-lhe os desígnios. Como precisa de figuras e imagens que lhe impressionem a imginação, o homem pintou os seres incorpóreos sob uma forma material, com atributos que lembram as qualidades ou os defeitos humanos. É assim que os antigos, ao quererem personficar o tempo, pintaram-no com a figura de um velho munido de uma foice e de uma ampulheta. Representá-lo com a figura de um mancebo seria um conta-senso. O mesmo se verifica com as alegorias da fortuna ou da verdade, entre outras. Os modernos representaram os anjos, ou puros Espíritos, com uma figura radiosa, de asas brancas, emblema da pureza. Satanás, aparece com chifres, com garras e com os atributos da animalidade, emblema das paixões vis. O povo, que toma as coisas à letra, viu nesses emblemas individuades reais, como vira outrora Saturno na alegoria do Tempo." (1)
(1) KARDEC, Allan - O Livro dos Espíritos. 2ªed. Mem Martins: Livros de Vida, 2005. ISBN 972-760-108-1. p. 95, 96.