22.9.09

a cerimónia do adeus



(fotografia de chris verene, "sabbath", 2004)

"Desculpa, mas tenho de Te interromper outra vez. Então e aquela pessoa que está doente mas tem uma fé que move montanhas - e por isso pensa, diz e acredita, que vai ficar melhor... mas acaba por morrer seis semanas depois. Como é que isso se enquadra nessa história toda do pensamento positivo, da acção construtiva?

Essa é boa. Estás a fazer as perguntas difíceis. Óptimo, não te limitas a aceitar a Minha palavra. Há um aspecto, lá mais para diante, em que terás de aceitar mesmo a Minha palavra - porque acabarás por descobrir que podemos discutir isso eternamente, tu e Eu, até não restar senão uma única coisa a fazer: «experimentá-la ou rejeitá-la». Mas ainda não chegámos lá. Por isso mantenhamos o diálogo, continuemos a conversar...

A pessoa que tem a «fé que move montanhas» e morre seis semanas depois moveu montanhas durante seis semanas. Talvez para ela tenha sido o bastante. Pode ter decidido, na última hora do último dia: «Está bem, já chega. Agora estou pronto para iniciar uma outra aventura.» Talvez os outros não saibam dessa decisão por ela não lhes ter dito. A verdade é que até pode ter tomado essa decisão muito antes - dias, semanas antes - e não ter dito nada aos outros; não ter dito nada a ninguém.

Vocês criaram uma sociedade na qual não é lá muito correcto uma pessoa desejar morrer - não muito correcto estar de pleno acordo com a morte. Como não querem morrer, não conseguem imaginar que alguém queira - seja em que circunstâncias for.

Mas há muitas situações nas quais a morte é preferível à vida - sei que entenderás isso se pensares um bocadinho. No entanto, essas verdades não te ocorrem - não são assim tão óbvias - quando fitas o rosto de alguém que prefere morrer. E a pessoa que está a morrer sabe isso. Consegue aperceber-se do grau de aceitação que reina, no quarto, com respeito à sua decisão.

Já reparaste na quantidade de pessoas que esperam que o quarto fique vazio para morrerem? Algumas até têm de dizer aos seus entes queridos: «Não, a sério, vão se embora. Vão comer qualquer coisa.» Ou «Vai dormir um bocadinho. Eu estou bem. Até amanhã de manhã.» E depois, quando o fiel guardião parte, a alma faz o mesmo, partindo do corpo do guardado.

Se dissessem ao grupo de parentes e amigos «Só desejo morrer», eles diriam: «Ah, não estás a falar a sério» ou «Ora, deixa-te disso», «Coragem!» ou «Por favor, não me deixes".

Todos os profissionais de saúde estão treinados para manter as pessoas vivas e não para as manter confortáveis a fim de que possam morrer com dignidade.

Como sabes, para um médico, para uma enfermeira, a morte é um fracasso. Para um amigo ou parente, a morte é uma tragédia. Só para a alma é que a morte é um alívio - uma libertação. O melhor presente que podes dar aos moribundos é deixá-los morrer em paz - sem pensares que devem «resistir», continuar a sofrer ou a preocupar-se contigo nessa fase crucial das suas vidas.

É o que muitas vezes terá acontecido no caso do homem que diz que vai viver, acredita que vai viver, que até reza para viver: é que, ao nível da alma, tenha «mudado de ideias». Está agora na altura de largar o corpo, para libertar a alma para outras demandas. Quando a alma toma essa decisão, nada que o corpo faça pode alterá-la. Nada que a mente pense pode alterá-la. É no momento da morte que ficamos a saber quem é que, no triunvirato corpo-mente-alma, detém o comando.

Durante toda a tua vida julgas que és o teu corpo. Uma parte do tempo achas que és a tua mente. É na altura da morte que descobres Quem Realmente És.

Ora há também momentos em que o corpo e a mente não dão ouvidos à alma. Situação que cria, também, o cenário que descreveste. A maior dificuldade que as pessoas têm é ouvir a sua própria alma. (Repara como são poucos os que os fazem.)

Ora acontece muitas vezes que a alma decide que está na altura de deixar o corpo. O corpo e a mente - eternos servos da alma - ouvem isso e inicia-se o processo de desprendimento. Só que a mente (ego) não quer aceitar. Afinal de contas, será o fim da sua existência. Por isso dá instruções ao corpo para que resista à morte. O que o corpo faz com toda a satisfação, pois também não quer morrer. Ao fazerem isso, o corpo e a mente (ego) recebem grande incitamento, grandes elogios do mundo exterior - o mundo da sua criação. Portanto, a estratégia confirma-se.

Ora, nesta altura tudo depende de quão forte é o desejo que a alma tem de partir. Se não houver uma grande urgência, a alma poderá dizer: «Está bem, vocês ganharam. Ficarei convosco mais uns tempos.» Mas se alma deixar bem claro que ficar não serve os seus mais sublimes propósitos - que já não tem qualquer hipótese de evoluir através daquele corpo - acaba por partir mesmo e nada a deterá - nem nada deverá detê-la.

A alma deixa ficar muito claro que o seu propósito é a evolução. É esse o seu único propósito - e o seu íntimo propósito. Não tem nada a ver com as realizações do corpo ou com o desenvolvimento da mente. Para a alma, nada disso tem importância.

A alma também deixa ficar claro que abandonar o corpo não é nenhuma tragédia. Em muitos aspectos, a tragédia é estar dentro do corpo. Por isso tens de entender que a alma encara toda esta história da morte de uma forma diferente. E, claro, também encara de forma diferente toda esta «história da vida» - e é isso que origina grande parte da frustração e ansiedade que uma pessoa sente na sua vida. A frustração e a ansiedade surgem por não se dar ouvidos à própria alma." (1)

neale donald walsch


(1) WALSCH, Neale Donald - Conversas com Deus. 14ª ed. Cascais: Sinais de Fogo, 2003. ISBN 972-8541-05-8. pg. 104-107.

2 comentários:

FABIANA disse...

Meu amigo, há muito tempo estou para deixar algum comentário no seu blog. Mas a correria do dia-a-dia, às vezes impede. Enfim, estou aqui. Acredito que as pessoas sintam medo de enfrentar a morte, porque têm medo do desconhecido. Para mim, perder é muito triste. Não sinto medo da morte, mas sim das perdas, não importam quais sejam. Fiz especialização em Bioética e a morte e a vida são sempre os temas centrais. Nós nunca estamos preparados para morte. E desejar morrer também não é um ato de covardia. Talvez seja até de coragem. Não sei... é algo a se pensar. No entanto, acho um absurdo os "mortos-vivos", pessoas que vivem sem viver, porque não prestam atenção nas coisas boas que a vida traz. Acho que a palavra-chave da morte é a mesma da vida: superação. Beijos

jorge vicente disse...

agora você me deixou com uma lágrima no rosto, amiga.



sabes o que rolando toro diz? que o encontro é a experiência mais maravilhosa do universo e que o afastamento é a maior tragédia. a morte, o afastamento do amigo, a perda. nessa altura, nós sofremos assim como toda a espécie humana: é sintomático sentirmos que uma parte de nós morre quando alguém no mundo morre numa tragédia como o tsunami, é sintomático chorarmos quando alguém que nós não conhecemos morre de fome; e quando morre alguém da nossa família morre, então nem se fala.



mas a morte, a separação, o afastamento também é, como você diz, um momento de superação, de renascimento. todas essas perdas, todos esses sofrimentos fazem parte da história humana e estão gravados em nós. se não sofrermos, não somos humanos. se não sentirmos dor com a dor de outrem, não somos humanos. ser humano com plenitude implica sempre dar-se, doar-se e saber receber com afecto. quando a dor aparece, devemos senti-la em todo o nosso ser: corpo e alma. depois, passa. como as sementes das folhas passam e dão origem a outras plantas, a outras árvores.



por isso, eu falei na cerimónia do adeus. no saber dizer adeus. sabemos a tragédia que vai dar origem, sabemos que um ser humano, com toda a sua história, com todo o seu amor que deu ou não deu, vai deixar de existir. pode ir habitar outro mundo ou não, pode ir habitar nas árvores, nas plantas, nas estrelas mas vai deixar de existir para nós, com aquele sorriso, com aquela história que partilhou connosco. e esse é o momento da superação. saber chorar, saber receber o abraço, mas superar e amar ainda mais a beleza da vida.



um grande abraço oceânico, cheio de água boa e pura

jorge