(fotografia de Arthur Tress, "Boy in TV Set, Boston, MA", 1972)
"Will apercebeu-se, pela primeira vez, aos sete anos, de que a mãe era diferente das outras pessoas e que ele tinha de tomar conta dela. Estavam os dois no supermercado e faziam um jogo: só podiam colocar um objecto dentro do carrinho quando não estivesse ninguém a olhar. Era função de Will olhar em volta e murmurar um «agora» e ela tirava uma lata ou um pacote da prateleira e colocava-o silenciosamente dentro do carrinho. Quando as coisas estivessem todas dentro do carrinho, eles estariam a salvo porque se tornavam invisíveis.
Era um jogo divertido e demorou muito tempo porque era sábado de manhã e a loja estava cheia de clientes, mas eles eram bons naquilo e trabalhavam em equipa. Will gostava muito da mãe e dizia-lho com frequência, tal como ela.
Quando chegaram à caixa, Will sentia-se excitado e feliz porque o jogo estava quase a chegar ao fim e eles estavam prestes a vencer. Quando a mãe não conseguiu descobrir o porta-moedas, isso também fazia parte do jogo, mesmo quando ela disse que o inimigo devia tê-la roubado; mas Will estava a ficar cansado do jogo e com fome e a Mãe já não parecia tão feliz; ela estava mesmo assustada; tiveram de voltar para trás e colocar todas as coisas de volta nas prateleiras, só que desta vez tinham de ser supercuidadosos porque os inimigos estavam a persegui-los através do número do cartão de crédito, que agora sabiam qual era porque lhe tinham roubado o porta-moedas...
Will sentia-se cada vez mais assustado. Percebeu como a sua mãe fora inteligente ao transformar o perigo concreto num jogo para que ele não se sentisse aterrorizado e como, agora que sabia da verdade, tinha de fingir não estar assustado, para a tranquilizar.
E assim o rapazinho fingiu que ainda estavam a brincar, para que a mãe não tivesse de se preocupar com ele, e foram para casa sem as compras, mas a salvo dos inimigos; foi então que Will descobriu o porta-moedas sobre a mesa do corredor. Na segunda-feira foram ao banco, fecharam a conta e abriram outra numa dependência diferente, por precaução. E assim o perigo passou.
Mas, nos meses seguintes, Will apercebeu-se, a pouco e pouco e contravontade, de que os inimigos da mãe não estavam algures no mundo, mas na cabeça dela." (1)
Philip Pullman
(1) PULLMAN, Philip - A torre dos anjos. 4ª ed. Barcarena: Presença, 2007. ISBN 978-972-23-3058-9. p. 15, 16.
Muito interessante este excerto, retirado do 2º volume do livro fantástico His Dark Materials, de Philip Pullman. O episódio do supermercado fez-me lembrar um texto de Italo Calvino, retirado de Marcovaldo (penso) no qual a família do protagonista (Marcovaldo) se divertia a retirar produtos da prateleira, metê-los no carrinho, passear um pouco com eles e, após algumas peripécias, voltar a colocá-los no mesmo sítio. Em qualquer dos excertos, uma excelente crítica ao nosso modo de vida.
Jorge Vicente