6.11.08

a noite abrir-nos-à



(quadro de pierre roussel, "olivier à la lampe rouge", 1963)

3.

as palavras são vertigens de noite
encontradas no meio da rua -
tropeçam, deixam cair, doem,
amanhecem com a dor dos homens
e das plantas que crescem nos
telhados.

no telhado, não se ouve o chão, é talvez preciso deitarmo-nos, arrastarmos os olhos e ouvirmos. não se ouve com o corpo, ouve-se com os olhos e com o sexo. as palavras escorrem, fazem birras, deitam-se connosco. morrem de enfarte e olham as nuvens que se estreitam entre os alvéolos da atmosfera e as cordilheiras do chão.

só assim será possível a liberdade.

jorge vicente

rainer maria rilke



(quadro de maurice denis, "solitude", 1913)


"Não creiais que aquele que procura consolar-vos agora vive despreocupado no meio das palavras simples e tranquilas que por vezes vos fazem bem. A sua vida tem muita dificuldade e tristeza e fica bem aquém da vossa. Se fosse de outro modo ele nunca teria sido capaz de encontrar essas palavras" (1)

rainer maria rilke



(1) RILKE, Rainer Maria apud SIEGEL, Bernie S. - Amor, medicina e milagres. 1ª ed. Lisboa: Sinais de Fogo, 2004. ISBN 972-8541-47-3. pgs. 52.

are we free men or slaves?



(fotografia de gundula schulze eldowy, "selbstportrait mit robert frank", 1990)


"Alguma vez observaram que existem duas classes de doentes [...] escravos e homens livres? E os médicos de escravos correm de um lado para o outro e curam os escravos ou esperam-nos nos dispensários. Os profissionais deste tipo nunca falam individualmente com os doentes nem os deixam falar sobre as suas queixas individuais. O médico de escravos receita o que sugeres a mera experiência, omo se tivesse um conhecimento exacto; e depois de dadas as suas ordens, como um tirano, apressa-se a dirigir-se a outro servo que esteja doente.

[...] Mas o outro médico, que é um homem livre, atende e exerce em homens livres; e leva as suas investigações mais atrás e vai à natureza da perturbação; envolve-se em discurso com o paciente e com os seus amigos e, ao mesmo tempo que obtém informações do homem doente, dá-lhe instruções à medida das suas capacidades e não lhe receita até o ter previamente convencido.

[...] Se um desses médicos empíricos, que praticam a medicina sem ciência, encontrasem o médico cavalheiro a conversar com o seu paciente cavalheiro utilizando linguagem próxima da filosofia, começando no início da doença e discorrendo sobre toda a natureza do corpo, explodiria de riso. Diria o que a maior parte daqueles a quem chamam doutores têm sempre na ponta da língua: «Homem insensato», diria: «não estás a curar o homem doente, mas a educá-lo; e ele não quer ser doutor mas sim curar-se.»" (1)

platão


(1) PLATÃO apud SIEGEL, Bernie S. - Amor, medicina e milagres. 1ª ed. Lisboa: Sinais de Fogo, 2004. ISBN 972-8541-47-3. pgs. 50-51.

os três tipos de doentes



(quadro de emil nolde, "patient, doctor, death and the devil", 1911)


"Depois da minha experiência com os Simontons, com a ajuda da minha mulher, Bobbie, e de Marcia Eager, então enfermeira no meu consultório, iniciei um grupo de terapia chamado Pacientes de Cancro Excepcionais (ECaP), para ajudar as pessoas a mobilizar todos os seus recursos contra a doença. Adoptámos como manual o livro recentemente publicado dos Simontons, Getting Well Again, e enviámos centenas de cartas a doentes. A carta sugeria que os podíamos ajudar a viver melhor e mais tempo através das técnicas que os ECap lhes ensinaria. Esperávamos centenas de respostas. Pensávamos que todos os que recebessem uma carta falassem com mais alguns pacientes de cancro e os trouxessem à reunião. Afinal de contas, pensava eu, viver não é o que toda a gente quer? Não há tantos doentes que vão até ao fim do mundo à procura de todas as espécies de tratamentos alternativos que ofereçam um laivo de esperança? Comecei a enervar-me acerca de como lidar com a multidão que ia aparecer.

Apareceram doze pessoas.

Foi aí que comecei a aprender, em primeira mão, como são realmente os doentes. Descobri que há três tipos.

Cerca de quinze a vinte por cento dos pacientes, inconsciente ou mesmo conscientemente, querem morrer. A certo ponto saúdam o cancro ou qualquer outra doença grave como forma de escapar aos problemas através da morte ou da doença. São estes os doentes que não manifestam sinais de tensão quando conhecem o diagnóstico. Enquanto o médico batalha para os pôr bons, eles resistem e tentam morrer. Se lhes perguntam como estão, dizem: «Óptimo.» E o que os preocupa? «Nada.»

(...)

No meio do espectro de doentes situa-se a maioria, cerca de 60 a 70 por cento. São como actores que fazem um teste de audição para um papel. Actuam para satisfazer o médico. Agem consoante o que julgam que o médico quer, na esperança de que assim o médico faça o trabalho todo e os remédios não saibam mal. Tomam os comprimidos religiosamente e comparecem nas consultas. Fazem o que lhes dizem - a menos que o médico sugira mudanças radicais no seu estilo de vida - mas nunca lhes ocorre questionar as decisões do médico ou lançarem-se a fazer eles próprios coisas que «sintam acertadas.» São pessoas que, perante a escolha, preferiam ser operadas a trabalhar activamente para se curarem.

No outro extremo estão os quinze a vinte por cento que são excepcionais. Não estão a fazer testes; estão a ser eles próprios. Recusam-se a desempenhar o papel de vítimas. Quando desempenham esse papel, os doentes não conseguem ajudar-se a si próprios, pois tudo lhes é feito.

(...)

Os doentes excepcionais recusam-se a ser vítimas. Educam-se a si próprios e tornam-se especialistas em cuidar de si próprios. Questionam o médico porque querem compreender o tratamento e participar nele. Exigem dignidade, personalização e controlo, seja qual for o curso da doença.

É preciso coragem para ser excepcional. Lembro-me de uma mulher que, quando lhe disseram que tinha de ir ao serviço de radiologia, respondeu: «Não. Não me explicaram este exame.» Quando os auxiliares lhe disseram: «Pode morrer esta noite se não fizer este exame», ela disse: «Então morro esta noite, mas não saio do quarto.» Apareceu imediatemente alguém para explicar para que servia o exame.

(...)

Os pacientes excepcionais querem saber todos os pormenores dos relatórios das radiografias. Querem saber o que significa cada valor nos relatórios de análises. Um médico que aproveite essa intensa preocupação do próprio em vez de a rejeitar e estar «demasiado ocupado», melhora substancialmente as hipóteses do doente.

Os médicos devem compreender que os doentes que consideram difíceis ou não cooperantes são os que têm maior probabilidade de cura.

(...)

Para saber se detêm actualmente a perspectiva de um doente excepcional, façam a si próprios esta pergunta antes de continuarem a ler: Querem viver até aos cem? Nos ECaP descobrimos que a capacidade de ser um paciente excepcional é correctamente previsível por um «Sim!» imediato e visceral sem ses, nem mas. A maior parte das pessoas dirá: «Bem, sim, desde que garanta que terei saúde.» No entanto, as pessoas que se tornam doentes excepcionais sabem que a vida não vem com essa garantia. Aceitam de boa vontade todos os riscos e desafios. Enquanto estão vivas, sentem que controlam o seu destino e contentam-se em receber alguma felicidade para si próprias e em dar alguma as outros. Têm aquilo que os psicólogos chamam um núcleioo de controlo interior. Não temem o futuro nem acontecimentos externos. Sabem que a felicidade vem de dentro.

(...)

Acho que todos os médicos deviam ser obrigados, como parte da sua formação, a assistir a serviços de cura onde aparecem pessoas com as chamadas doenças incuráveis. Devia dizer-se aos clínicos que não estão autorizados a receitar medicação ou a pensar em operar essas pessoas, mas simplesmente que saiam e as vão ajudar. Assim os médicos aprenderiam que podem ajudar tocando, rezando ou simplesmente partilhando a nível emocional. (1)

bernie s. siegel

(1) SIEGEL, Bernie S. - Amor, medicina e milagres. 1ª ed. Lisboa: Sinais de Fogo, 2004. ISBN 972-8541-47-3. pgs. 45-50.

3.11.08

um sussurro...



(quadro de bernhard kretzschmar, "two unlikely lovers", 1923)


"Não sei quando foi que compreendi que é precisamente este inferno no qual apostamos as nossas vidas que nos dá a energia, a possibilidade de cuidarmos uns dos outros. Um cirurgião não emerge do ventre materno besuntado de compaixão como se se tratasse de escorrências do parto. É muito mais tarde que surge. Não por súbita iluminação de graça, mas pelo murmúrio acumulado das inúmeras feridas que tratou, das incisões que fez, de todas as chagas, úlceras e cavidades que tocou para curar. No início mal se ouve, é um sussurro, como provindo de muitas bocas. Vai aumentando lentamente, elevando-se da carne que goteja até, por fim, ser um chamamento puro - um som exclusivo, como o grito de certos pássaros solitários - dizendo que da ressonância entre o homem doente e aquele que o trata pode emergir a cortesia profunda a que os religiosos chamam Amor." (1)

dick selzer



(1) SELZER, Dick apud SIEGEL, Bernie S. - Amor, medicina e milagres. 1ª ed. Lisboa: Sinais de Fogo, 2004. ISBN 972-8541-47-3. pgs. 40.

hospital means hospes (hóspede)



(quadro de mary cassatt, "baby and nurse reclining", circa 1886)


"A palavra «hospital» vem do termo latino para «hóspede», mas a instituição poucas vezes é verdadeiramente hospitaleira. Pouca atenção é posta no interesse ou na cura, ao contrário da medicação. Já me questionei muitas vezes sobre a razão porque os projectistas não fizeram, pelo menos, tectos bonitos, já que os doentes têm de passar tanto tempo a olhar para eles. Há um televisor em cada sala, mas que música, que vídeo criativo, meditativo ou humorístico está disponível para ajudar a estabelecer um ambiente de cura? Que liberdade se dá aos pacientes de manter a sua identidade?

(...)

Quando alguém está no hospital, os membros do pessoal tornam-se parte da família dessa pessoa, pois vêem o paciente mais vezes e mais intimamente que qualquer outra pessoa. Temos de encarar essa responsabilidade oferecendo o tipo de apoio carinhoso que é esperado da família. Eles não podem fazer o trabalho todo nas poucas horas de visita. Lembro-me de um dos meus pacientes, com carcinoma do cólon e metástases nos pulmões e no cérebro, que recusava o tratamento para poder morrer ao sol no seu pátio, a ouvir os pássaros. Porque não podem os hospitais ser igualmente acolhedores?

Por me permitir sentir tão intensamente quanto possível a mesma dor e o mesmo medo que sentiam os meus pacientes, fui-me apercebendo de que há um aspecto da medicina mais importante do que todos os procedimentos técnicos. Aprendi que há muito mais a oferecer que a cirurgia e que a minha ajuda se podia estender aos moribundos e aos seus sobreviventes. De facto, concluí que a única razão verdadeira para permanecer nesta actividade era oferecer às pessoas uma amizade que possam sentir, exactamente quando mais precisam" (1)

bernie s. siegel




(1) SIEGEL, Bernie S. - Amor, medicina e milagres. 1ª ed. Lisboa: Sinais de Fogo, 2004. ISBN 972-8541-47-3. pgs. 38-40.

2.11.08

who's afraid of damien?




he is the son of the devil, you know...