16.6.07

Descoberta do Inefável (Lêdo Ivo)


(quadro de Max Ernst)

"Sem o sublime. que é o poeta? Sem o inefável,
como se pode louvar, não traindo a si mesmo,
a plena e estranha juventude da moça a quem ama?
Que é o poeta, que imita as marés,
sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa sempre nua
como se as estrelas estivessem caminhando governadas pelo seu riso
e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?

Sem que seu canto suba até aos céus, sufocante música da terra,
que é o poeta?
Libertado estou quando canto. E quero
que minha respiração oriente a vontade das nuvens
e meu pensamento de amor se misture ao horizonte.
Cantando, quero outubro, gosto de lágrima, salsugem,
no instante anterior ao despertar, folha voando.

Sem o inefável, que dura sempre, sem permanecer,
como conseguirei louvar essa moça a quem amo
e que nasce em minha lembrança plena como a noite
e triunfante como uma rosa que durasse eternamente
e não se limitasse à glória de um dia?
Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar,
não poderei descer de repente
ao inferno do seu corpo nu.

O sobrenatural ainda existe. E não seremos nós
que alteraremos a indizível ordem das coisas
com as nossas mãos que poderão ficar imóveis
em pleno amor, diante do corpo amado.

É inútil pensar que os anjos morreram
ou se despaisaram, buscando outros lugares.
Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da Noite,
entre as nuvens e as casas em que moramos.

Repentinamente, as vozes da infância nos chamam para a féerica
[viagem
e lembram que podemos fugir para o longe guardado ainda
[no sempre.
Então, nossas necessidades não se reduzem apenas a comer,
[dormir e amar.

Temos necessidade de anjos, para ser homens.
Temos necessidade de anjos, para ser poetas.

Vem, incontável música, e anuncia
(o poeta e ao homem, humilde unidade)
a ressurreição diária dos anjos.

Restaura em mim a certeza de que a folha voando é seu indomável
[divertimento
pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez
sem que eu soubesse, por um anjo
perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.

Não é a manhã, depositando a semente de alegria no coração [dos homens.
Não é a vida, cântico triunfal descendo sobre as almas.
Não é o poeta, subindo pelos andaimes de carne da lembrança
[de uma mulher.
São os anjos, que vieram ligar-nos mais uma vez
à ordem eterna e à anunciação.
Não nos libertaremos jamais desses anjos
feitos de terra e mar, celestes criaturas
que deixam cair em nós o sol da harmonia.

É inútil matar os anjos.
Eles são invisíveis e traiçoeiros.
De repente, quando nos sentimos seguros, já não somos
os consumidores de instantes, e estamos
entre o Dia e a Noite, no umbral
de uma eternidade vigiada pelos anjos." (1)

Lêdo Ivo




(1) IVO, Lêdo - Uma lira dos vinte anos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962. p. 67,68.

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