a bondade
(quadro de will barnet, "youth" (1970)
"O amante da bondade, porém, jamais pode permitir-se viver uma vida solitária; e, no entanto, a vida que ele passa na companhia dos outros e por amor aos outros deve permanecer essencialmente sem testemunhas; falta-lhe, acima de tudo, a companhia de si próprio. Não é um homem solitário, mas isolado; embora conviva com outros, deve ocultar-se deles e não pode sequer permitir-se a si mesmo ver o que está fazendo. O filósofo pode sempre contar com a companhia dos pensamentos, ao passo que as obras não podem ser companhia para ninguém: devem ser esquecidas a partir do instante em que são praticadas, porque até mesmo a memória delas destrói a sua qualidade de «bondade». Além disto, o acto de pensar, por poder ser lembrado, pode cristalizar-se em pensamentos; e os pensamentos, como todas as coisas que devem a sua existência à memória, podem ser transformados em objectos tangíveis que, como a página ou o livro impresso, se tornam parte do artifício humano. As boas obras, por deverem ser imediatamente esquecidas, nunca podem tornar-se parte do mundo; vêm e vão sem deixar vestígios; e não pertencem claramente a este mundo.
É este carácter extramundano das boas obras que faz do amante da bondade uma figura essencialmente religiosa e torna a bondade, como a sabedoria na antiguidade, uma qualidade essencialmente inumana e sobre-humana. E, no entanto, o amor à bondade, ao contrário do amor à sabedoria, não se limita à experiência de poucos, da mesma forma que o isolamento, ao contrário da solidão, está ao alcance da experiência de todos os homens." (1)
(Hannah Arendt)
(1) ARENDT, Hannah - A condição humana. Lisboa: Relógio d'Água, 2001. ISBN 972-708-637-3. p 89-90.